
DIREITO Tributário – Processos Administrativos
INTRODUÇÃO
A atual Constituição brasileira consagra, em seu artigo 5º, o processo administrativo tributário como uma garantia fundamental do administrado, na medida em que lhe assegura o direito de petição aos Poderes Públicos contra a ilegalidade ou abuso de poder, o devido processo legal, o direito à ampla defesa e ao contraditório.
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É cediço que o processo administrativo fiscal é um instrumento importante para solução de conflitos, de forma mais célere e menos dispendiosa, tanto para o contribuinte como para o próprio Fisco, tendo por objetivo o autocontrole do ato administrativo do lançamento e o acertamento do crédito tributário, visando, em última análise, a efetiva justiça fiscal.
No âmbito federal, o contencioso tributário é desenvolvido por órgãos integrantes do próprio Ministério da Fazenda, quais sejam as Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento (primeira instância); o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (segunda instância); e a Câmara Superior de Recursos Fiscais (instância especial).
Destaque-se que o sujeito passivo, inconformado com ato praticado pelo Fisco e optando por discutir administrativamente a imposição tributária pode, a qualquer momento, recorrer ao Judiciário.
Entrementes, tem suscitado relevante e atual discussão no âmbito acadêmico e doutrinário saber se o direito de recorrer ao Judiciário, no contexto peculiar do processo administrativo tributário federal, é exclusivo do administrado ou pode ser estendido à Fazenda.
O presente estudo propõe-se a analisar, sob a égide dos princípios, normas, doutrina e jurisprudência, os aspectos e as decorrências das decisões contrárias ao Erário no processo administrativo tributário federal.
Especificamente, objetiva-se investigar a possibilidade de a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional ajuizar ação para tentar reverter decisão administrativa em caráter definitivo, julgada de forma favorável ao contribuinte.
Esta monografia inicia-se abordando aspectos funcionais do processo administrativo fiscal e com uma breve diferenciação deste para com o processo judicial.
Na sequência explanam-se os princípios dirigentes do contencioso administrativo tributário, notadamente os de natureza constitucional, administrativa e específica.
Prosseguindo, já no terceiro capítulo, aclara-se o funcionamento do contencioso administrativo da União, perpassando a legislação infraconstitucional regente e dissecando a estrutura atinente a cada instância julgadora.
A temática central é explorada no capítulo quarto. Nele é estudada a definitividade das decisões administrativas nas lides tributárias, analisados os atos normativos que disciplinam a matéria em apreço no âmbito da Fazenda Nacional, explicitados os argumentos doutrinários favoráveis e contrários, e referenciado o posicionamento predominante nos tribunais.
Por fim, no desfecho do trabalho, é emitido posicionamento do autor acerca do questionamento judicial, pela Fazenda Pública, de decisões dos seus órgãos julgadores, irreformáveis administrativamente. Propõe-se, ainda, uma superação para o impasse com conciliação do interesse público e do particular.
1 ASPECTOS GERAIS DO PROCESSO ADMINISTRATIVO TRIBUTARIO
1.1 Relevância e utilidade
A Constituição Federal de 1988 trouxe o processo para o rol das garantias fundamentais do cidadão, por meio dos incisos LIV e LV do artigo 5°:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[…]LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; (BRASIL, 1988)
Garantiu-se aos litigantes o direito constitucional de discutir, em processo administrativo ou judicial, o seu direito violado. Tal comando constitucional abrange a Administração Tributária, devendo os fiscos federal, estadual e municipal manterem órgãos especializados no julgamento do contencioso administrativo tributário.
Nesse liame, Machado conceitua:
A expressão processo administrativo fiscal pode ser usada em sentido amplo e em sentido restrito. Em sentido amplo, tal expressão designa o conjunto de atos administrativos tendentes ao reconhecimento, pela autoridade competente, de uma situação jurídica pertinente à relação fisco-contribuinte. Em sentido estrito, a expressão processo administrativo fiscal designa a espécie do processo administrativo destinado à administração e exigência do crédito tributário. (MACHADO, 2008, p. 445)
Hodiernamente o processo administrativo tributário vem se consubstanciando em um meio útil na busca da pacificação e do equilíbrio da relação jurídica tributária, firmada entre o Estado (sujeito ativo) e contribuinte (sujeito passivo).
Embora o processo administrativo fiscal não tenha poder jurisdicional, a sua existência se justifica e se faz necessária por oferecer, dentre outras, as seguintes vantagens:
Ø dispensa formalidades excessivas e complexos ritos processuais. O contribuinte não será obrigado a se fazer representar por intermédio de advogado, como ocorre no processo judicial;
Ø possibilita à Administração a oportunidade de rever o ato de lançamento praticado pelos seus agentes , em conformidade com as Súmulas nº 346 e nº 473, editadas pelo Supremo Tribunal Federal – STF, em observância ao poder de autotutela administrativa;
Ø é gratuito;
Ø suspende a exigibilidade do crédito tributário enquanto a matéria estiver pendente de apreciação nos órgãos julgadores, em virtude de impugnação ou recurso administrativo;
Ø permite a verificação dos requisitos de liquidez e de certeza inerentes ao crédito tributário, nos termos dos artigos 201 a 204, da Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional – CTN) e da Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980 (Lei de Execução Fiscal);
Ø enseja uma decisão mais precisa e especializada, dado o grau de conhecimento técnico dos julgadores tributários administrativos.
Dessa forma, verifica-se que o contencioso administrativo tributário serve tanto ao Fisco, à medida que possibilita a revisão interna do ato administrativo, principalmente o do lançamento, quanto ao contribuinte, já que é colocado à sua disposição um instrumento eficaz e ágil para análise da exigência a ele imposta. Presta-se, ainda, ao próprio Poder Judiciário, pois evita a interposição de demandas judiciais desnecessárias.
1.2 Processo e procedimento administrativo fiscal
Com a evolução da doutrina processual, tornou-se necessário diferenciar processo de procedimento.
Di Pietro (1999) define procedimento como formalidades que devem ser observadas para a prática de certos atos administrativos, equivalendo a rito, a forma de proceder, sendo normalmente desenvolvido dentro de um processo administrativo.
Meirelles, ao seu turno, ressalta:
O processo, portanto, pode realizar-se por diferentes procedimentos, consoante a natureza da questão a decidir e os objetivos da decisão. Observamos, ainda, que não há processo sem procedimento, mas há procedimentos administrativos que não constituem processo, como, por exemplo, os de licitações e concursos. O que caracteriza o processo é o ordenamento de atos para a solução de uma controvérsia; o que tipifica o procedimento de um processo é o modo específico do ordenamento desses atos. (MEIRELLES, 2004, p. 658)
Sinteticamente, pode-se aduzir que o procedimento é a forma de desenvolvimento dos atos processuais, enquanto o processo reúne os atos harmônicos e coordenados, praticados pelos sujeitos processuais de acordo com regras e princípios previstos em lei, visando assegurar a unidade do conjunto para a solução da lide.
Nessa esteira, Marins (2002) destaca que o procedimento fiscal tem caráter fiscalizatório ou apuratório, tendo a finalidade de preparar o ato de lançamento (etapa intermediária entre o procedimento e o processo), ao passo que o processo administrativo tributário refere-se ao conjunto de normas que disciplina o regime jurídico para a solução das lides fiscais formalizadas perante a Fazenda Pública.
Assim, na opinião de Marins (2002), ocorrem no âmbito administrativo fiscal três momentos distintos:
1. procedimento preparatório do ato de lançamento tributário;
2. ato de lançamento;
3. processo de julgamento da lide fiscal.
Na ação fiscal de determinação e exigência de crédito tributário, o procedimento vai desde a fiscalização até a formalização do ato administrativo de lançamento ou de aplicação de penalidade.
O lançamento aparece como etapa intermediária entre o procedimento e o processo. O procedimento é a fase de fiscalização e apuração, com o objetivo de alcançar o lançamento.
Entretanto, nem sempre o lançamento será precedido de procedimento. Há casos em que a Administração utiliza-se de dados pré-fixados para o lançamento do tributo.
Nesta etapa fiscalizatória, a priori, não há que se falar em contraditório ou ampla defesa, já que inexiste qualquer pretensão fiscal exigida.
Com a realização do lançamento, através de Auto de Infração ou Notificação de Lançamento, ganha exigibilidade o crédito tributário, o que confere ao contribuinte as opções de pagar ou de impugnar a pretensão fiscal.
Se o contribuinte optar pelo pagamento, extingue-se o crédito tributário e com ele a relação jurídica tributária. Neste caso, não há que se falar em processo.
Entretanto, se houver a entrega de uma impugnação dentro do prazo estabelecido em lei, instaurar-se-á a fase litigiosa, passando a assistirem ao contribuinte as garantias constitucionais e legais do devido processo legal.
Marins defende a ocorrência de uma transformação do procedimento para processo administrativo tributário, antes da fase judicial:
[…] a etapa contenciosa (processual) caracteriza-se pelo aparecimento formalizado do conflito de interesses, isto é, transmuda-se a atividade administrativa de procedimento para processo no momento em que o contribuinte registra seu inconformismo com o ato praticado pela administração, seja ato de lançamento de tributo ou qualquer outro ato que, no seu entender, lhe cause gravame, como a aplicação de multa por suposto incumprimento de dever instrumental. (MARINS, 2002, p. 164)
Conclui-se que na atividade administrativa fiscal é visível a distinção entre processo e procedimento. Em geral, o procedimento precede o processo.
1.3 Distinções entre o processo administrativo tributário e o processo judicial tributário
Em geral, o processo tributário é constituído por um conjunto de atos administrativos ou judiciais tendentes à apuração de obrigação tributária ou do descumprimento desta, com o objetivo de resolver controvérsias entre o Fisco e o contribuinte.
Quanto ao processo administrativo fiscal, Cais assevera:
Em senda administrativa, o contencioso tributário constitui uma continuação, ou a antecipação, ou, ainda, a reabertura do processo de lançamento, no sentido de que essa discussão é dotada da mesma natureza do processo de lançamento, que fica suspenso até a sua decisão final, a qual constituirá o lançamento definitivo. […] (CAIS, 2007, p. 250)
Balizando-se no ensinamento da doutrina pátria, extraem-se as seguintes características inerentes ao processo administrativo fiscal:
Ø controle interno da legalidade do lançamento: a Administração controla a legalidade de seus próprios atos, podendo até anulá-los face ao seu poder de autotutela;
Ø inexistência de uma relação triangular: a Fazenda Pública é, ao mesmo tempo, parte e julgador;
Ø limitação da eficácia das decisões: os órgãos administrativos julgadores não possuem jurisdição e também não detém competência para reconhecer a ilegalidade ou a inconstitucionalidade das normas tributárias. As decisões administrativas, mesmo que proferidas em última instância, são passíveis de revisão pelo Poder Judiciário;
Ø não possui caráter expropriatório: mesmo que a procedência do crédito tributário seja decidida em caráter definitivo, no âmbito administrativo, a administração só poderá executar o patrimônio do sujeito passivo pela via judicial, através de uma ação de execução fiscal;
Ø a estrutura da administração julgadora é montada dentro do próprio Poder Executivo. Não há total independência para julgar;
Ø cada pessoa política, União, Estados, Distrito Federal e Municípios, tem capacidade para estabelecer normas acerca de seus respectivos processos administrativos fiscais;
Ø é regido pelo Princípio do Informalismo: a principal característica do informalismo é a não exigência de formas rígidas para sua instauração, instrução e decisão, a não ser quando a lei assim o exigir;
Ø obedece ao Princípio da Verdade Material: diferentemente do processo judicial em que vigora o princípio da verdade formal resultante das provas e dos fatos incluídos pelas partes nos autos, o que se busca no processo administrativo é a verdade real. Serão consideradas todas as provas e fatos novos, ainda que desfavoráveis à Fazenda Pública.
Há de se registrar, contudo, que em decorrência do preceito insculpido no artigo 5º, XXXV, do Diploma Constitucional, a matéria objeto do processo administrativo pode, a qualquer tempo, ser submetida à apreciação do Poder Judiciário, não sendo necessária a formulação prévia do pleito na esfera administrativa.
A título ilustrativo, as ações judiciais mais utilizadas nas discussões travadas em torno da relação jurídica tributária são: ação de execução fiscal (tem por objeto a cobrança de créditos fiscais atribuídos à União, aos Estados, Distrito Federal e aos Municípios e às respectivas autarquias); ação declaratória (é promovida em face do ente público com a finalidade de se reconhecer a existência ou inexistência de dada relação jurídica tributária); ação de repetição de indébito (visa a obter o reconhecimento de direito à devolução de tributo pago indevidamente); ação anulatória (possui o escopo de obter a nulidade do ato que constituiu o crédito tributário); mandado de segurança (utilizado para afastar qualquer ato de autoridade pública que afronte direito líquido e certo); e a ação popular (dirigida a anular os atos lesivos ao patrimônio público).
Cabe aqui elencar peculiaridades do processo judicial tributário, levantadas por vários doutrinadores, que o distingue do contencioso administrativo fiscal:
Ø controle externo da legalidade: o Poder Judiciário controla os atos praticados pela Administração;
Ø elação triangular: estão presentes os três elementos subjetivos que lhe são típicos: o autor, o réu e o julgador;
Ø formalismo: é revestido de aspectos e regras determinados por dispositivos legais;
Ø obedece ao Princípio da Verdade Formal: o juiz deve ater-se às provas indicadas, no devido tempo, pelas partes, obedecendo ao brocado “o que não está nos autos, não está no mundo”;
Ø definitividade dos julgados: das decisões judiciais em última instância não se pode mais interpor recurso.
Ø poder expropriatório: a ação de execução fiscal pode resultar na perda, por parte do sujeito passivo, de parte de seu patrimônio, com o objetivo de cumprir a decisão que lhe tenha sido desfavorável.
Ø a lei de regência é de competência privativa da União, que legisla sobre direito processual, conforme o art. 22 da CF;
Ø privilégios processuais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: possuem prazo em quádruplo para contestar, prazo em dobro para recorrer, direito a execução por precatórios e a duplo grau obrigatório em caso de decisões a eles contrárias.
Ademais, o processo judicial, diferentemente do processo administrativo, somente tem a suspensão da exigibilidade do crédito tributário se for oferecida garantia ou concedida antecipação de tutela ou liminar ao autor. O que, muitas das vezes, representa um óbice ao contribuinte para questionar a cobrança ilegal de tributos, principalmente àqueles de poucos recursos financeiros.
Cumpre ressaltar que, caso haja propositura de ação judicial pelo contribuinte, o processo administrativo terá o seu curso cessado, em face da reserva jurisdicional contemplada no sistema brasileiro, consoante o parágrafo único do art. 38 da Lei nº 6.830/1980. Esta renúncia às instâncias administrativas diz respeito, apenas, à matéria comum aos dois processos e está fundamentada no fato de as decisões judiciais serem autônomas e definitivas.
Questão de grande relevo é a análise da decadência face à interposição de ação judicial pelo sujeito passivo, situação em que o contribuinte se antecipa à autoridade lançadora e obtém judicialmente a suspensão do crédito tributário antes mesmo de sua constituição.
Na visão de Machado Segundo (2009), a realização do lançamento nos casos em que o contribuinte esteja protegido por medida judicial, não implica violação de direito individual e sim, resguardo do crédito tributário em relação à decadência. Caso não se efetue o lançamento no curso do prazo decadencial e a ação judicial não seja decidida em definitivo nesse prazo, a Fazenda Nacional não mais poderá exercer o seu direito.
Tal entendimento, ainda de acordo com Machado Segundo (2009), advém do fato de que o direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário mediante lançamento é, reconhecidamente, um direito potestativo, o qual pode ser exercitado unilateralmente, independente de qualquer condição ou da colaboração de terceiros.
Destarte, a suspensão da exigibilidade prevista no CTN refere-se ao crédito tributário regularmente constituído e não à possibilidade de a autoridade administrativa efetuar o lançamento. Assim, o que se impede é a cobrança do crédito tributário quando esse se encontra com exigibilidade suspensa. Portanto, a Fazenda Pública não está impedida de proceder ao ato administrativo de lançamento, tendo expressa autorização legal, qual seja o art. 63 da Lei n° 9.430, de 27 de dezembro de 1996.